Resistir: Consumir com moderação, criar sem nenhuma

Edite Amorim
4 min readMay 23, 2017
@Miguel Marecos

(Artigo originalmente publicado na FENTHER.NET, como parte do conjunto de crónicas “Pedaços de Pensar Grande”)

O caos da rapidez e da vertigem embalam o mundo. É tudo depressa e muito; a profundidade tem menos lugar do que a expansão. Chegar longe urge mais do que fazer-se impregnar, empapar, penetrar até a um fundo tão fundo quanto o que permite a mudança. E a mudança, que se quer feita de avanço com sentido, feita de contra-propostas com pés e alma, feita de respiro novo que traga oxigenação ao estiolado, estaciona e pára, para descansar do que nem começa.
O crescer devagar é arrancado de raiz, não há tempo. Não há tempo porque não rende, não enche camiões nem estádios, não dá sorriso imediato, gargalhada fácil, pacificação do cérebro cansado, anestesia dos sentidos aturdidos.
O crescer devagar demora muito e não há tempo para o invisível, para o que se passa debaixo da terra, enquanto as raízes fortes se formam e se ancoram à terra humedecida de riqueza natural feita larva e minerais.

Ainda assim, há Quixotes que se batem contra o moinho desta rapidez, contra a aceleração que devasta a beleza do que cresce devagar, contra o que convida a subir em autocarros onde cabemos todos, onde cabe tudo, onde tudo é igual e com pontas arredondadas, para encaixar quando o espaço apertar.
Ainda assim há Quixotes que estendem espadas de madeira que não vergam nem partem. Quixotes que escrevem odes à resistência aos camiões cheios, ao massivo do tudo igual, à corrente que leva os peixes adormecidos, quase mortos.

Há Quixotes e há também Dulcineias e Sanchos de barrigas proeminents e tantos outros personagens que não cabem em categorias e clichês, que se criam no percurso que inventam para si e na ação que desenham a cada dia, a cada ato.
Há personagens que resistem. Personagens que preferem a escrita com pena própria à cópia plagiada de uma realidade massiva inventada à pressão do copiar-colar.
Personagens de vida, de rua, de dias de todos os dias; personagens feitos “eu’s” que passeiam em bibliotecas, ao por do sol, nos corredores dos seus consultórios, nas cozinhas das suas casas, diante dos quadros das suas salas de aula. Personagens que se chamam pelo nome próprio e pelo traçado não pontilhado que decidem assumir na forma como desenham, organizam, orientam, cozinham o caminho que lhes é dado viver. Personagens — eu, tu, ela, ele, nós, vós, elas, eles — que ocupam(os) a Terra neste tempo ao mesmo tempo.
Personagens que dão corpo às palavras do contemporâneo filósofo francês, Michel Onfray: “Résister, c’est dire non dans un monde où tout nous invite à dire oui.”* (Resistir é dizer não num mundo onde tudo nos convida a dizer sim) e o mostram com ação que lhes sai dos dedos.
Então os dedos decidem o que fazer, decidem as formas como vão resistir. Uns pintam gritos, beleza que inspira ou espelhos que refletem o estado das coisas; uns dançam quotidianos, acrescentando movimentos bailados às massas que não funcionam ou às massas por amassar; outros educam, inspiram, dão horas de tempo a ouvir, a estar, a sentir. Uns plantam, regam, podam, escolhem sementes que valham a pena plantar. Uns escrevem prosa, poesia, diários ou cartas.
Para o Oliver Sacks, neurocientista e usador da caneta, era esta aliás, a coisa a fazer, no estado atual do mundo girante:“The most we can do is to write — intelligently, creatively, critically, evocatively — about what it is like living in the world at this time.” (O melhor que podemos fazer é escrever — de forma inteligível, criativa, crítica e evocativa — sobre como é viver no mundo nos dias de hoje).
E assim uns escrevem, outros pintam, outros educam, outros dançam, outros cozinham, plantam, cuidam, fotografam a realidade com os seus dedos de consciência e presença.

E, nesta sinfonia às vezes impercetível, silenciosa como o vento que corre manso, o mundo contraria o caos. Não estamos perdidos, nunca vamos estar perdidos. Porque ainda que os camiões, cheios de cópias clonadas de realidades adormecidas, continuem a marchar a favor do conformismo amorfo, os Flautistas de Hamelin farão tocar outras marchas. Conduzirão, a pé e com ritmo, ao passeio alegre por uma floresta onde a diversidade se mantém, onde a diferença tem casa e pasto, onde a unicidade se aprecia. Resistir não será só a negação, mas também o abraço. O apertar junto ao corpo do Possível todo cheio, da alegria das coisas belas, da ligação entre afins que se encontram para a criação de quotidianos que fazem saltar outros ventos.

Fazer saltar outros ventos, sacudir o pó do mundo, redesenhar o real a pastel ou aguarela: e a resistência aparece, num gesto criador feito das mãos de todos nós, de olhos abertos, de coração ao alto.

*Michel Onfray (2017) “La parole du peuple” (p. 31)
**Artigo no “The Guardian “ My life with Oliver Sacks: ‘He was the most unusual person I had ever known’ —
https://www.theguardian.com/books/2017/mar/26/bill-hayes-insomniac-city-my-life-with-oliver-sacks-new-york?CMP=fb_a-culture_b-gdnculture

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Edite Amorim

Founder and coordinator of THINKING-BIG (www.thinking-big.com). Facilitator, Speaker, Writer, Traveler. Into Positive Psychology, Creativity, Dance, Life