Os eventos que (não) amassam o Humano

Edite Amorim
6 min readAug 25, 2017

O que fica e se enaltece daquilo que é a humanidade do mundo nos pós-horrores”

As desgraças são fáceis de ler e saltam à vista desde as capas de jornal e reportagens que dizem, gritando: “Choca-te, indigna-te, fecha-te, atemoriza-te. O mundo cai em pedaços de horror, teme!”.

São atentados que matam gente e também a crença no que ainda vive e respira e permanece. São mortes com intenção, que estraçalham vidas e que afundam a capacidade de coração aberto e o sentido humano à prova de tudo.

Mas, no passeio lento por entre as notícias do mundo, filtram-se as letras que permitem manter o que importa, e impedir que caia, como castelo de cartas mal feito, a certeza de que o Humano permanece. O Humano naquilo que (também) tem de mais belo, de mais precioso, de mais profundo de melhor.

Impera, por isso, destacar e nomear os gestos que demonstram que não é sempre o biliar ódio que ganha e que o elevar-se no sentir é maior do que qualquer vídeo de raiva.

São muito os exemplos destas lutas de flores na mão — em que a flor não se revela inocência alheada do real mas liberdade para florescer — que inspiram ao todo maior que podemos aspirar a ser, mesmo nas piores circunstâncias. Exemplos que se recolhem e guardam.

Como a carta dedicada aos terroristas que foi tornada pública por Antoine Leiris. O marido de Hélène Muyal-Leiris, uma das mulheres que perdeu a vida no atentado no Bataclan, imortalizou a frase de recusa ao ódio fácil, à revolta interior e ao rancor que faz murchar. Essa carta aberta termina assim:

Foto de Thibault Montamat, Vogue, Outubro 2016

“Somos dois, o meu filho e eu, mas somos mais fortes do que todas as armas do mundo. Já não tenho mais tempo para vos entregar, devo juntar-me ao Melvil que desperta da sua sesta. Tem apenas 17 meses e vai agora lanchar como todos os dias, e depois vamos brincar, como todos os dias, e em toda a sua vida de menino far-vos-á a afronta de ser feliz e livre. Porque não, também não tereis o seu ódio.”

Esta ideia repetiu-se algum tempo depois, no discurso de despedida de Etienne Cardiles, o companheiro de Xavier Jugelé, o soldado abatido nos Campos Elísios, no dia a seguir a ter perdido o seu amor:

“Vous n’aurez pas ma haine, car cette haine, elle ne lui ressemble pas.” (Vocês não terão o meu ódio, porque o ódio não se parece com ele.”

Discursos longe da raiva, perto do amor que importa.

Também nos resquícios do atentado de Barcelona ficam imagens de corações limpos, isentos de violências interiores e de vinganças inúteis. Xavier Martínez, pai de uma das duas crianças mortas nas conhecidas Ramblas, deixa como primeiras palavras da entrevista que concedeu, as notas de abertura:

“(…) comparto el dolor con los familiares de los terroristas. Lo comparto. Somos personas. Somos muy, muy, muy, muy personas. No estoy hablando como si estuviera drogado. No tomo ningún tipo de pastillas: no las necesito. Estoy hablando con el corazón”. (Partilho a dor com os familiares dos terroristas. Partilho-a. Somos pessoas. Somos muito, muito, muito, muito pessoas. Não falo como se estivesse drogado. Não tomo nenhum tipo de pastilhas: não necessito delas. Estou a falar desde o coração.)

E acrescenta ainda o espaço para a abertura mais geral, de todos: “Me encanta ver que la Rambla vuelve a estar llena. Que no haya miedo. (Gosto de ver que a Rambla volta a estar cheia. Que não haja medo.)

Xavier desejou “abraçar um Muçulmano”. E o imã Driss Sallym, da localidade onde vivem, aproximou-se, emocionou-se e com eles chorou, num abraço anti-todos-os-ódios.

Imagens de “El Periódico”

Estes discursos em nome próprio são ecos de muitas mais vozes por todo o mundo que acreditam que o encerramento do acreditar não é nem fruto que se colhe nem resultado inevitável dos males que acontecem.

E são também ecos de outras frases e sentires que fizeram história, como os ecos vindos da África desigual e violenta vivida por Mandela:

“O perdão liberta a alma, afasta o medo. É por isso que é uma arma tão poderosa.”;

da Holanda de onde Etty Hillesum e a sua família foram levados para os campos de concentração:

“Eu conheço e partilho os imensos sofrimentos que o ser humano pode experienciar, mas não me deixo prender por eles; eles passam por mim, como a própria vida, como parte de um riacho eterno e mais amplo… e a vida continua…”;

dos EUA onde Martin Luther King Jr. perdeu a vida num ato de ódio levado por crenças na supremacia de cores de pele e de raças:

“Recuso-me a aceitar a perspetiva de que a espécie humana esteja de tal modo tragicamente ligada à escuridão, ao racismo e à guerra, que a luz da paz e da fraternidade não consigam tornar-se realidade. Acredito que a verdade desarmada e o amor incondicional tenham a palavra final.”

Talvez se possa, então, ensinar o amor, educar para a paz e fazer da empatia a disciplina mais importante, em tudo o que a educação formal e informal têm de mais precioso.

Talvez a chave seja um foco neste educar que se faz em cada pedaço do dia. Dentro das escolas, olhando, estando, sentindo e mostrando, além da Matemática e da Biologia, o lugar da Empatia. Como refere, numa forte carta aberta, um dos professores da escola catalã onde estudaram, até há bem pouco tempo, os miúdos que agora morreram depois de terem provocado a morte em Barcelona:

“(…) Eu não peço a paz mundial. Peço que o nosso trabalho possa desenvolver o seu pequeno papel de mudança do mundo, para que esse trabalho se some a outros e outros e outros. Peço, ou melhor, exijo, o importante: recursos não para educar mas sim para deter o horror. Porque talvez não haja forma de deter o horror mas, se a houver, ela estará na cultura, no conhecimento, na educação e na empatia.”

Talvez a Malala Yousafzai, também ela vítima de atentados de ódio e ainda assim ativista pelo Amor ensinável, resuma a ideia deste professor com a sua frase conhecida:

“Um livro, uma caneta, uma criança e um professor podem mudar o mundo.”

Mas é também além da sala de aula, na vida de todos os dias — através dos artigos que partilhamos, das iniciativas no quotidiano pequeno, das discussões inspiradoras que aceitamos ter para plantar perspetivas diferentes — que a batalha entre o ceder ao medo ou cultivar a fértil amplidão de dentro possa ganhar espaço.

O Humano continua a parecer amassado nas notícias, mas é nos corações que se decide o lugar do que é maior.

Eduque-se, dentro e fora das escolas, das casas, dos grupos de amigos, das redes sociais, para a partilha e o lugar dado ao que importa.

Partilhem-se histórias que digam alto que o medo e o ódio são só possibilidades, e que o perdão e o amor são, talvez, a mais preciosa escolha que ficará para a história do que é Ser-se Humano.

>>>Os discursos completos:

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Edite Amorim

Founder and coordinator of THINKING-BIG (www.thinking-big.com). Facilitator, Speaker, Writer, Traveler. Into Positive Psychology, Creativity, Dance, Life